terça-feira, 23 de agosto de 2011

O que estamos dispostos a fazer para conseguir uma casa em tempos de crise...

Esta noite, vi-me a mim e à minha família a visitar a casa-museu de um famoso realizador de filmes de terror, que, fascinado pela sua arte, transformara o seu lar num verdadeiro cenário de filmes de terror clássicos.
As paredes altíssimas eram feitas de grande blocos de pedra cinzenta, e, se bem me lembro, em certas divisões não havia tecto: olhando para cima, conseguíamos ver o céu, coberto de espessas nuvens cinzentas. Não se viam janelas, e os candelabros estavam todos apagados e envoltos em teias de aranha. Uma luz pálida, quase gélida, entrava através das divisões sem tecto ou de minúsculos buracos nas paredes. O chão era umas vezes de madeira, outras de pedra, mas sempre frio como um morto.
Era difícil acreditar que um dia alguém tinha habitado aquela casa.
Ao entrarmos, passámos sob um colossal arco lanceolado,e deparámos-nos com um poço tão fundo que, ao olharmos para baixo, víamos apenas escuridão. Dir-se-ia que ia dar ao próprio inferno.
A única maneira de transpor aquele vazio era atravessá-lo sobre portões metálicos constituídos por finíssimas barras que se cruzavam vertical e horizontalmente. Estas plataformas estavam em constante movimento, deslocando-se ao longo de várias e longas divisões, sobrepondo-se umas às outras, afastando-se subitamente, e repletas de armadilhas escondidas. A qualquer momento, podíamos cair no abismo negro que estava sob os nossos pés.
Felizmente, conseguíamos chegar em segurança a uma sala ampla, da qual apenas uma parede permanecia inteira: nela, havia quatro ou cinco janelas lanceoladas, tão altas e esguias que ocupavam a parede desde o chão ao tecto. Tratavam-se de vitrais coloridos em tons de roxos e azuis. Não havia tecto na sala... Lembro-me que sobre ela o céu era lilás, e, por detrás de algumas nuvens, viam-se uma ou duas estrelas, que irradiavam uma luz muito fraca.
Diante da janela, havia uma elaborada (e, honestamente, pirosa) estátua de uma raposa branca ou um arminho. Diante dela, havia um cálice com o que à primeira vista poderiam parecer pauzinhos queimados, e uma inscrição com instruções deixadas pelo falecido dono da casa. Segundo a inscrição, o seu espírito continuava a divagar pelas paredes da casa, sob a forma de um fantasma de uma raposa branca ou de um arminho. ISto era possível apenas devido à estátua que tínhamos diante dos nossos olhos. Estava também escrito que o espírito estava disposto a deixar a sua casa ao fã que lhe escrevesse a carta mais comovente de todas. O seu único desejo era que não mudassem em nada o aspecto da casa nem destruíssem a sua estátua.
"Está bem, está..." pensei "Se fosse eu, era a primeira coisa que ia à vida".
Depois, porém, pus-me a pensar... Eu precisava de uma casa, e, apesar de tudo, esta era de borla. Decidi tentar a minha sorte. Inclinei-me sobre o cálice, para perceber se era lá que os fãs deixavam as suas cartas, e constatei que aqueles poucos pauzinhos queimados eram na verdade pequenos rolos de pergaminho.
Nesse momento, o fantasma do antigo proprietário apareceu diante de mim. Parecia feito de fumo: a sua forma alterava-se constantemente, e era difícil perceber se tinha se seria azul ou branco. Os seus olhos ora pareciam vazios, ora imensamente tristes. Ao afastar-me, reparei que havia no cachaço do bicho um grande buraco negro, à volta do qual o pêlo estava manchado de sangue escuro. Era o buraco deixado pela bala que tinha morto o homem.
Estava cheia de medo, mas, enquanto me afastava, consegui reunir coragem suficiente para me voltar para trás, piscar o olho ao espírito e dizer:
-Eu vejo-te depois, ok? Trago-te a minha carta daqui a uns dias.
Ele olhou para mim com uma expressão vaga, depois desapareceu.
Voltar a sair daquela casa sombria foi muito mais complicado do que entrar. Quando tornei a aproximar-me das plataformas, gritei de medo, como se fosse incapaz de as atravessar. Quando me ouviu, um homem que já estava muito à minha frente correu para trás para me ajudar. Tinha uma grande "afro", era judeu, e suponho que se tratasse de um grande amigo de Zé Oliveira, namorado de uma tia minha.
-Não! Eu consigo! - gritei, quando percebi quais eram as suas intenções. Senti-me mal por fazê-lo arriscar a sua vida. Mas nada o deteve: aproximou-se de mim, deu-me a mão, e começou a andar comigo atrás dele, segurando sempre as suas duas mãos.
-Não pensem! - recomendou a minha mãe, já longe. - É preciso não pensar!
Depois de ela dizer isto resolvi seguir o meu instinto, e realmente tudo me pareceu mais fácil, até perceber que caminhávamos com os pés esquerdos e direitos em plataformas diferente, que aos poucos se iam afastando uma da outra.
-Oh meu Deus! Oh meus Deus! - murmurava eu, ao ver que não conseguia saltar para nenhuma das duas plataformas sem cair no abismo.
Para piorar a situação, eu e o meu companheiro apercebe-mo-nos de que Zé Oliveira se encontrava na mesma situação, pouco adiante. Só que estava imóvel, enquanto que nós éramos rapidamente impelidos na sua direcção.
O momento seguinte parecia uma cena retirada de um filme animado: o meu companheiro caíra e eu agarrara-o pelos braços, e Zé Oliveira, que caíra também, agarrara-se desesperadamente às suas pernas. Entretanto, eu estava prestes a fazer a espargata.
Tinha de me livrar o mais depressa possível daquele peso ou acabaríamos por mergulhar os três na escuridão.
Reuni todas as minhas forças (que na realidade são nenhumas)e consegui atirar os dois homens para uma plataforma onde estariam seguros. Os dois agradeceram-me, e comecei a ouvir aplausos ao meu lado: quatro membros de uma equipa de football americano (se bem que muito pouco robustos) aplaudiam a minha proeza, confortavelmente sentados em cadeiras de plástico montadas na plataforma metálica à minha direita.
Conseguimos sair sãos e salvos da casa, mas não sem que antes o Zé Olveira esbarrasse contra uma mesa onde estava servido um banquete sumptuoso, e tivesse que arrancar um garfo que tinha ficado espetado na sua perna esquerda após o acidente.

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