Tambem esta noite, sonhei com o meu pai.
Nao o vejo ha mais ou menos quatro anos, e mal me lembro da cara dele: so me consigo recordar de uma fotografia sua que me ofereceu pouco antes de se ir embora, dizendo que como nao gostava dela, eu podia ficar com ela.
Desde algum tempo para ca, quando tento pensar na cara do meu pai, por muito que me esforce, e sempre igual aquela fotografia: sempre a mesma expressão, como se o rosto tivesse sido congelado, sempre o mesmo olhar vago, o cabelo penteado para o mesmo lado e a barba feita, o colarinho da mesma camisola...
Tenho imensa curiosidade em saber como esta agora.
Ha uns dias, o meu irmao esteve com ele: para mim, foi muito estranho. Parecia que ele tinha estado com uma pessoa de quem sempre falamos mas que na realidade, nao existe, e com a qual nunca estariamos (como um personagem de um filme, ou assim...).
Ate tive alguma inveja do meu irmao.
Quando eu voltei a casa nesse dia, so queria ouvir uma descrição sua do aspecto do pai, apesar de os assuntos discutidos no tribunal serem muito mais importantes.
O Tomas revelou-me que o nosso pai era muito mais pequeno que ele (algo que eu ja sabia, uma vez que decorei a altura do meu pai muito antes de ele sair da casa, e sei que hoje medimos os dois 1,74cm, muito inferiores aos 1,80m e tal do meu irmao), tinha a voz muito mais fina que a dele (isto fez-me muita impressao, mas uma vez que nao me lembro da voz do meu pai nao consegui sequer imaginar como seria a sua voz fininha), e contou-me ainda que estava mais velho, e, ate, feio.
-Feio?! - exclamei, incredula. Lembro-me de ter achado o meu pai bonito toda a minha vida.
-Sim - insistiu o meu irmao. Contou-me que agora o pai tinha as bochechas descaídas e a cara mais quadrada, alguma barriguinha, e parecia atarracado.
-Parece que encolheu!- comentou.
-Queres dizer que esta a mirrar??
-Sim. Se calhar, ate esta mais baixo que tu. A serio, vais dar pela diferença quando o voltares a ver.
Bem tentei, mas nao o consegui imaginar assim: so o conseguia ver como naquela maldita fotografia.
Contaram-me ainda que o meu pai nao reconheceu o meu irmao e nao saberia quem ele era se este nao se tivesse aproximado dele, e tambem sei que nao perguntou por mim.
Mas esta noite sonhei com o meu pai.
Por um motivo qualquer, a minha mae levava-me ao restaurante chines perto da nossa casa em Massama (o que e absurdo, porque ela se fartou de comida chinesa depois de eu a forçar a ela e ao resto da familia a ir la constantemente).
Eu estava felicissima, a falar com ela e a rir (adoooro comida chinesa), ate, ao passar por uma parede de vidro pintada, me deparar com duas pessoas sentadas a uma mesa. Uma delas, sei que era o meu irmao, apesar de nao ter visto mais que a sua silhueta, uma forma muito pouco difusa. A outra, era o meu pai.
Estava tal e qual o Tomas o tinha descrito, com a exactidao que apenas os sonhos e a imaginaçao desgovernada sao capazes de conceber, mas, ainda assim, eu reconheci-o.
Parecia que o mundo tinha parado e so existiam os olhos dele, muito concentrados e fitos em mim.
Ja nao me lembro como era a cara dele... So sei que tinha as bochechas descaídas, de facto, e grandes papos cor-de-rosa debaixo dos olhos. O resto, nao consigo descrever.
Dei meia volta, meio atordoada, e senti uma terrivel vontade de ir a casa-de-banho.
Comecei a andar em direcçao a casa-de-banho, quando o meu pai se levantou num salto e gritou:
-Não vais embora!
-Vou só a casa-de-banho... -disse. Lembro-me de me sentir muito feliz por ele me querer impedir de ir embora. Ele queria estar comigo.
Lembro-me que ele se acalmou... E não sei como acabou o sonho.
Era naquele restaurante que ele, eu e o meu irmão nos encontrávamos todas as quartas-feiras, antes de ele ir embora. Iamos la tantas vezes que começaram a oferecer-me pulseiras.
Passados dois anos sem o ver, voltei a esse restaurante: tinha tido uma excelente nota num teste qualquer, e, geralmente, eu podia ir buscar sopa chinesa para o meu jantar quando isso acontecia.
Nem eu, nem o meu irmão, e muito menos a minha mãe, la tínhamos ido desde que os encontros com o meu pai tinham sido cancelados...
Ao reconhecer-me, o empregado riu e quase saltou de contentamento, enquanto tagarelava:
-Ilmaozinho, Ilmaozinho! - disse ele, assinalando com a mão a altura que o meu irmão tinha da ultima vez que o vira.
-Irmaozao! - respondei, com um sorriso, agitando a mão acima da minha cabeça, para que ele percebesse que agora o Tomas era bem maior que eu.
Ele riu, todo satisfeito, e logo a seguir perguntou:
-E o pai?
-Não o vejo há dois anos!- respondi, com toda a naturalidade.
O homem ficou aterrado, e durante uns instantes não se mexeu, limitou-se a olhar para mim, mudo, com uma expressão de horror na cara.
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