quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Casa mágica

Hoje sonhei que trabalhava numa bonita casa mágica. Tinha um aspecto barroco, com uma decoração exagerada e elaborada, para além demasiado colorida. Era bonita.
Eu vendia bilhetes para a atracção. Lembro-me de ter muitos problemas com o dinheiro: nas mãos dos clientes, eram euros, mas assim que passavam para as minhas, as moedas transformavam-se, e em vez dos conhecidos números e desenhos, apareciam corujas, retratos de velhas senhoras... Era dinheiro mágico. Eu não sabia contá-lo, por isso recusei-me a vender entradas as dois jovens até encontrar um colega capaz de o fazer.
Eles não fizeram caso: entraram à força, e desapareceram a correr pelos corredores. A voar, eu precipitei-me atrás deles: eu não podia pisar o chão daquela casa. Para mim, e para todo o pessoal mágico que lá trabalhava, o chão era como água. Podíamos mergulhar e nadar nele, vendo os clientes caminharem sobre a superfície. Felizmente não aconteceu, mas sei que se alguém fizesse um encantamento para solidificar o chão, todas as pessoas que estivessem a nadar morreriam esmagadas ou entaladas entre a madeira.
Eu voava como sempre voo nos meus sonhos. Normalmente, a estava agarrada a um poste, ou no topo de um móvel. Depois, lançava-me na direcção do vazio, empurrando com as pernas o poste ou o móvel. Para me manter no ar, limitava-me a ondular o corpo, como se nadasse. Por vezes, tinha de empurrar as paredes para me virar na direcção certa.
Acabei por encontrar os dois fugitivos, bem como um colega capaz de contar o dinheiro mágico. Demos-lhes os devidos bilhetes, e deixá-mo-los continuar a visita em paz.

a última moda

Há já uma noites, sonhei que via uma fotografia de uma modelo: ela tinha cortado a metade inferior das orelhas. Num repente, tudo quanto era mulher estava a fazer o mesmo. 
Eu decidi experimentar também. Como não podia pagar para o fazer numa loja como deve de ser, fi-lo eu própria, na casa de banho da minha casa. Sem anestesia, sem limpar a tesoura, em suma, sem cuidados nenhuns, encostei a lâmina à cartilagem e cortei. Para minha surpresa, a orelha rasgou-se com tanta facilidade quanto papel, e o corte não foi perfeito. Alarmada, inclinei-me de encontro ao espelho para avaliar os danos. Concluí que não eram assim tão maus, e sob o cabelo até passariam despercebidos. 
Com todo o cuidado, cortei a pele que ainda prendia a orelha ao crânio. 
Olhei o pedaço que eu cortara e deitei-o fora. 
Apesar de não ter sentido dor nem ter sangrado, uma vez que o corte não fora perfeito achei que o melhor seria não cortar a orelha direita também. 
Mais tarde arrependi-me de ter cortado a esquerda. Quase chorei ao pensar que aquela mutilação era definitiva: a minha orelha não ia crescer outra vez, encontrar um dador era impossível, já que as orelhas são tão únicas quanto as impressões digitais, e uma prótese seria demasiado cara. 
Mas o que mais me inquietava era a reacção da minha mãe quando descobrisse. 
Ao contrário do que eu esperava, ela gostou. 

Quando acordei, agarrei as orelhas entre o polegar e o indicador e sorri. 

Para sobreviver, qualquer coisa

Acho que se tratava de um programa de televisão...
Estávamos no ultimo andar de um prédio rodeado por um vasto jardim, e o nosso objectivo era escapar vivos: entre as paredes brancas, e entre as plantas grandes e coloridas, vagueavam zombies, arrastando os pés sobre a relva. Os corpos enfraquecidos pela putrefacção cambaleavam curvados, com os braços pendentes ao lado do corpo, oscilando ao ritmo do seu rastejar. Moviam-se tão devagar, e com tanto custo, que davam a impressão de terem pés de chumbo.
Mas não deixavam de ser perigosos por isso.
Tínhamos acabado de analisar a nossa situação, e de conceber um plano para escaparmos: o quarto onde nos encontrávamos tinha uma porta que dava para um segundo quarto quarto. Ambos tinham acesso ao corredor, onde zombies andavam para trás e para a frente sem parar. O plano era simples: um de nós iria para o segundo quarto, cuidadosamente fechando a porta atrás de si. Depois, abriria a porta desse segundo quarto que dava para corredor. O barulho da maçaneta não passaria despercebido aos zombies: eles aproximar-se-iam para investigar, e encontrariam uma presa, que se deixaria devorar enquanto os restantes humanos fugiam pelo corredor deserto.
Eu fui a escolhida para ser sacrificada. Reclamei, e recusei-me a fazê-lo, mas todos insistiram que, de qualquer maneira, eu era aquela que tinha menos hipóteses de sobreviver. Além do mais, esta era a única maneira que eu tinha de ajudar o grupo, visto que não sabia usar armas, nem era dotada de nenhuma outra qualidade útil naquelas circunstâncias.
Insisti que não o faria, mas o grupo não mudou de ideias. Temeram, no entanto, que a minha falta de vontade pusesse em risco o plano. Por isso, um homem gordo, entre os 30 e os 40 anos, voluntariou-se para me acompanhar até ao segundo quarto, e certificar-se de que eu cooperava. Assim que eu abrisse a porta, ele regressaria ao primeiro quarto.
No segundo quarto, pedi ao homem gordo que me desse uns minutos.Ele lançou-me um olhar desconfiado, mas consentiu. À beira das lágrimas, fechei-me numa minúscula casa-de-banho.
Quando olhei para o espelho, tive uma ideia.
Eu ainda me podia salvar. Não sabia se o meu plano iria funcionar, havia, aliás, uma grande probabilidade de ele falhar. Mas eu só tinha duas escolhas: correr o risco, ou resignar-me e morrer sem sequer tentar escapar. O grupo provavelmente morreria. Não me importava: se eles estavam tão dispostos a sacrificar-me, eu não me preocuparia se eles morressem.
Abri um minúsculo armário na casa-de-banho, e para minha alegria, encontrei maquilhagem e uma peruca. Voltei-me para o espelho, enfiei a peruca e maquilhei-me até ficar o mais parecida possível com um zombie. Provavelmente devido às cores de que dispunha, eu parecia o cadáver de um homem negro. Não era um disfarce muito convincente, um ser humano jamais se deixaria enganar por ele. Para não perder o ânimo, disse a mim mesma que os zombies eram estúpidos.
Respirei fundo e saí da casa de banho, arrastando hesistantemente os pés. Tinha a cabeça inclina sobre o peito, e a boca aberta, revelando os dentes cobertos de maquilhagem castanha.
O homem gordo veio ao meu encontro, e disse-me, gesticulando ansiosamente:
-Ouve, eu quero dizer-te que lamento imenso... Mas não temos outra hipótese, percebes?
Nesse momento vi um zombie aparecer atrás dele, silencioso como uma sombra. Parece que eles tinham aprendido a abrir portas. Parece que nem as maçanetas nem as dobradiças eram tão barulhentas quanto nós tínhamos pensado.
Soube o que ia acontecer e decidi fazer o que fosse necessário.
-Tu ainda não és um zombie! - exclamou o homem, como se só então se tivesse apercebido de algo estranho no meu comportamento- Porque é que te estás a mexer assim?
O zombie que eu vira atrás dele mordeu-lhe a nuca. Eu avancei e trinquei o pescoço. Lembro-me de ter pensado: "um pouco de sangue até ajuda o disfarce".
Atraídos pelos gritos do homem, mais zombies entraram no quarto para se juntarem ao festim. No primeiro quarto, o grupo percebeu que algo correrra mal e começou a chorar.
Eu estava tão assustada que não sentia o sabor da carne na minha boca. Por vezes, tinha a sensação de estar fora do meu corpo, a murmurar para mim mesma: "estás a ir bem, eles não perceberam que não és realmente um zombie. Continua assim, fica calma". Depois, abruptamente, caía em mim, e via a minha boca escancarada sobre o que restava de um pescoço ensanguentado. A cada segundo que passava mais zombies vinham inclinar-se ao redor do corpo. Certa vez, um deles lançou-me por instantes um olhar de uma profunda e macabra satisfação. Não sabia que os rostos dos zombies eram capazes de formar expressões. Isso fazia-os parecer criaturas, até um certo ponto, vivas e conscientes. Contive o meu espanto. Percebi que ele esperava que eu o retribuísse o seu sorriso, e com um pedaço de pele a pender-me dos dentes, abri os lábios.
Dentro de pouco tempo, havia demasiados zombies no quarto para que eu estivesse segura. Tantos se esforçavam para alcançar o cadáver, que poderiam arranhar-me ou morder-me acidentalmente. O mais discretamente possível, comecei a recuar. Os mortos estavam tão distraídos com a carne que nem estranharam a minha falta de interesse pela refeição.
Ao atravessar o corredor, passei por vários mortos que seguiam na direcção contrária. O corredor era estreito, e eu senti as suas mãos ossudas e frias roçarem as minhas. O hálito nauseabundo emanado pelas suas bocas escancaradas era nojento para lá da descrição. Mas o pior de tudo eram os olhos: estavam ansiosos e atentos, para que lhes escapasse qualquer pista capaz de lhes indicar onde estava a carne. Percebia-se que estavam com pressa, que tinham de chegar, depressa, enquanto ainda havia alguma coisa agarrada aos ossos do homem gordo. Por momentos, fixavam-se em mim. Eu não sabia de devia encará-los ou não. Optei por não o fazer, esperando não levantar suspeitas.
Era dificil conter as lágrimas, e era difícil não correr, mas o mais difícil de tudo era respirar devagar e discretamente. Aquelas coisas não respiravam: se me vissem arfar, saberiam que algo estava errado.
Cheguei às escadas em segurança. Depois de descer os degraus, só me lembro de estar a sair do prédio. A minha alegria ao ver a relva foi imensa. Mas mantive-me firme, e, sempre fazendo-me passar por um zombie, andei durante horas, até chegar a uma alta vedação, que contornava o território dos estúdios.
Escapei. Não tenho a certeza em relação ao resto do grupo, mas acho que todos morreram. e eu, que era quem tinha menos hipóteses de sobreviver, salvei-me.