Esta noite, vi-me a mim e à minha família a visitar a casa-museu de um famoso realizador de filmes de terror, que, fascinado pela sua arte, transformara o seu lar num verdadeiro cenário de filmes de terror clássicos.
As paredes altíssimas eram feitas de grande blocos de pedra cinzenta, e, se bem me lembro, em certas divisões não havia tecto: olhando para cima, conseguíamos ver o céu, coberto de espessas nuvens cinzentas. Não se viam janelas, e os candelabros estavam todos apagados e envoltos em teias de aranha. Uma luz pálida, quase gélida, entrava através das divisões sem tecto ou de minúsculos buracos nas paredes. O chão era umas vezes de madeira, outras de pedra, mas sempre frio como um morto.
Era difícil acreditar que um dia alguém tinha habitado aquela casa.
Ao entrarmos, passámos sob um colossal arco lanceolado,e deparámos-nos com um poço tão fundo que, ao olharmos para baixo, víamos apenas escuridão. Dir-se-ia que ia dar ao próprio inferno.
A única maneira de transpor aquele vazio era atravessá-lo sobre portões metálicos constituídos por finíssimas barras que se cruzavam vertical e horizontalmente. Estas plataformas estavam em constante movimento, deslocando-se ao longo de várias e longas divisões, sobrepondo-se umas às outras, afastando-se subitamente, e repletas de armadilhas escondidas. A qualquer momento, podíamos cair no abismo negro que estava sob os nossos pés.
Felizmente, conseguíamos chegar em segurança a uma sala ampla, da qual apenas uma parede permanecia inteira: nela, havia quatro ou cinco janelas lanceoladas, tão altas e esguias que ocupavam a parede desde o chão ao tecto. Tratavam-se de vitrais coloridos em tons de roxos e azuis. Não havia tecto na sala... Lembro-me que sobre ela o céu era lilás, e, por detrás de algumas nuvens, viam-se uma ou duas estrelas, que irradiavam uma luz muito fraca.
Diante da janela, havia uma elaborada (e, honestamente, pirosa) estátua de uma raposa branca ou um arminho. Diante dela, havia um cálice com o que à primeira vista poderiam parecer pauzinhos queimados, e uma inscrição com instruções deixadas pelo falecido dono da casa. Segundo a inscrição, o seu espírito continuava a divagar pelas paredes da casa, sob a forma de um fantasma de uma raposa branca ou de um arminho. ISto era possível apenas devido à estátua que tínhamos diante dos nossos olhos. Estava também escrito que o espírito estava disposto a deixar a sua casa ao fã que lhe escrevesse a carta mais comovente de todas. O seu único desejo era que não mudassem em nada o aspecto da casa nem destruíssem a sua estátua.
"Está bem, está..." pensei "Se fosse eu, era a primeira coisa que ia à vida".
Depois, porém, pus-me a pensar... Eu precisava de uma casa, e, apesar de tudo, esta era de borla. Decidi tentar a minha sorte. Inclinei-me sobre o cálice, para perceber se era lá que os fãs deixavam as suas cartas, e constatei que aqueles poucos pauzinhos queimados eram na verdade pequenos rolos de pergaminho.
Nesse momento, o fantasma do antigo proprietário apareceu diante de mim. Parecia feito de fumo: a sua forma alterava-se constantemente, e era difícil perceber se tinha se seria azul ou branco. Os seus olhos ora pareciam vazios, ora imensamente tristes. Ao afastar-me, reparei que havia no cachaço do bicho um grande buraco negro, à volta do qual o pêlo estava manchado de sangue escuro. Era o buraco deixado pela bala que tinha morto o homem.
Estava cheia de medo, mas, enquanto me afastava, consegui reunir coragem suficiente para me voltar para trás, piscar o olho ao espírito e dizer:
-Eu vejo-te depois, ok? Trago-te a minha carta daqui a uns dias.
Ele olhou para mim com uma expressão vaga, depois desapareceu.
Voltar a sair daquela casa sombria foi muito mais complicado do que entrar. Quando tornei a aproximar-me das plataformas, gritei de medo, como se fosse incapaz de as atravessar. Quando me ouviu, um homem que já estava muito à minha frente correu para trás para me ajudar. Tinha uma grande "afro", era judeu, e suponho que se tratasse de um grande amigo de Zé Oliveira, namorado de uma tia minha.
-Não! Eu consigo! - gritei, quando percebi quais eram as suas intenções. Senti-me mal por fazê-lo arriscar a sua vida. Mas nada o deteve: aproximou-se de mim, deu-me a mão, e começou a andar comigo atrás dele, segurando sempre as suas duas mãos.
-Não pensem! - recomendou a minha mãe, já longe. - É preciso não pensar!
Depois de ela dizer isto resolvi seguir o meu instinto, e realmente tudo me pareceu mais fácil, até perceber que caminhávamos com os pés esquerdos e direitos em plataformas diferente, que aos poucos se iam afastando uma da outra.
-Oh meu Deus! Oh meus Deus! - murmurava eu, ao ver que não conseguia saltar para nenhuma das duas plataformas sem cair no abismo.
Para piorar a situação, eu e o meu companheiro apercebe-mo-nos de que Zé Oliveira se encontrava na mesma situação, pouco adiante. Só que estava imóvel, enquanto que nós éramos rapidamente impelidos na sua direcção.
O momento seguinte parecia uma cena retirada de um filme animado: o meu companheiro caíra e eu agarrara-o pelos braços, e Zé Oliveira, que caíra também, agarrara-se desesperadamente às suas pernas. Entretanto, eu estava prestes a fazer a espargata.
Tinha de me livrar o mais depressa possível daquele peso ou acabaríamos por mergulhar os três na escuridão.
Reuni todas as minhas forças (que na realidade são nenhumas)e consegui atirar os dois homens para uma plataforma onde estariam seguros. Os dois agradeceram-me, e comecei a ouvir aplausos ao meu lado: quatro membros de uma equipa de football americano (se bem que muito pouco robustos) aplaudiam a minha proeza, confortavelmente sentados em cadeiras de plástico montadas na plataforma metálica à minha direita.
Conseguimos sair sãos e salvos da casa, mas não sem que antes o Zé Olveira esbarrasse contra uma mesa onde estava servido um banquete sumptuoso, e tivesse que arrancar um garfo que tinha ficado espetado na sua perna esquerda após o acidente.
terça-feira, 23 de agosto de 2011
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Canibalismo e civilizações perdidas
Há já muito tempo que não escrevo... Hoje, contudo, o sonho que vou contar fez-me notar a minha falta: estava numa sala de cinema muito longa e estreita. Era clara, acho que toda branca, mas estava um pouco escuro. Por vezes, era difícil perceber se estávamos realmente entre quatro paredes ou ao ar livre.
Comigo, estavam o meu irmão e a minha prima Ana. O filme que estávamos a ver era muito mau, para além de dolorosamente aborrecido. Por isso, apesar de já nos terem repreendido algumas vezes, nós continuávamos a falar.
A dada altura, Ana revelou-nos que se tinha chateado com uma amiga sua: a Inês, com quem passei uns dias à pouco tempo:
-Mas ela teve o que merecia: a Patrícia comeu-a!
Fui sacudida por um arrepio tão gelado que me fez doer o corpo. A Patrícia é outra das amigas de Ana, com quem também estive este Verão.
-O quê? - murmurei, incrédula.
-A Patrícia comeu-a. Ela e mais algumas amigas dela. Foi bem-feita!
Quase deixei de ouvir Ana, durante algum tempo. Sentia-me tonta, e estava prestes a vomitar.
Entretanto, Ana continuava a tagarelar:
-Cortaram-na aos bocadinhos, guardaram a carne num frigorífico e foram comendo. É que a Patrícia faz parte de uma seita canibal qualquer, sabes? Se alguém chateia uma dela... pronto! Mas foi bem-feita, foi bem-feita...
Como é que era possível que a Ana fosse amiga de uma pessoa assim? Porque não tinha revelado isto a mais ninguém? Estaria com medo? E como é que era possível que a polícia nunca tivesse descoberto qualquer vestígio de um crime tão macabro:
-Onde é que elas escondem os ossos? - lembrei-me de perguntar.
A Ana assumiu uma expressão pensativa, e acabou por me dizer que não sabia.
-Mas agora eu tenho de ter cuidado com elas... - disse-me ela, num tom subitamente sério - É que eu e a Patrícia chateá-mo-nos, sabes?
Quando ela me contou isto, apeteceu-me desatar a chorar. O Tomás, por seu turno, ficou animadíssimo, comentando com a nossa prima como era empolgante ela fazer parte de semelhante drama.
Entretanto, eu fiquei tão nervosa que desatei a comer qualquer coisa e a falar, pelo que fui expulsa da sala. Lembro-me que na altura em que me expulsaram apareceu no ecrã um homem de aspecto rude, com uma palhinha na boca. Lembrou-me o Chuck Norris. Estava num campo aberto, cheio de capim.
Dei comigo numa imensa cidade greco-romana, que aos pouco uma equipa de arqueólogos ia escavando.
Tudo estava intacto: as esculturas, os edifícios... Mas era tudo de um branco imaculado: todas as pinturas de cores vivas tinham desaparecido.
Acabei por encontrar o meu professor de animação Zepe, que, juntamente com um um ou dois companheiros, explorava o achado.
Segui-os à distância (provavelmente com medo que o meu professor me perguntasse alguma em relação a um trabalho em atraso). Passei as mãos por um mosaico lindíssimo, feito de pequenas pedrinhas de um verde-jade, macias como seda.
Zepe acabou por se aperceber da minha presença e foi ao meu encontro. Revelou-me que uma escavação semelhante àquela estava naquele momento a ser feita no jardim da quinta onde moro.
Incrédula, fui a correr para casa.
Quando vi que a parte bonita do nosso jardim tinha desaparecido, e que no seu lugar havia um buracão colossal, pensei como o tio e a mãe ficariam aborrecidos.
Lá em baixo, a pelo menos 25 metros da superfície, uma antiga cidade greco-romana era redescoberta.
"Será que pediram permissão ao tio para escavar no jardim dele?" pensei "Será que lhe estão a pagar para estar aqui?".
Desci. Aquele achado era agora usado como uma espécie de parque temático: tal como em Óbidos se fazem feiras medievais, ali deparei-me com uma feira greco-romana. Muitas pessoas usavam togas.
Ao fim de algum tempo parei junto de uma banca onde se vendia fruta, construída sobre uma estrutura de madeira improvisada. Sentei-me junto a uma cesta e pus-me a comer frutos secos (que na realidade detesto).
De volta a casa, cruzei-me com o meu padrasto e disse-lhe:
-Tio! Já sabes que havia uma cidade greco-romana in-tei-ri-nha debaixo do jardim?!
-Oh! Mas isso via-se logo! - retorquiu ele. Deduzi que tivesse descoberto tal coisa através das irregularidades do terreno.
Comigo, estavam o meu irmão e a minha prima Ana. O filme que estávamos a ver era muito mau, para além de dolorosamente aborrecido. Por isso, apesar de já nos terem repreendido algumas vezes, nós continuávamos a falar.
A dada altura, Ana revelou-nos que se tinha chateado com uma amiga sua: a Inês, com quem passei uns dias à pouco tempo:
-Mas ela teve o que merecia: a Patrícia comeu-a!
Fui sacudida por um arrepio tão gelado que me fez doer o corpo. A Patrícia é outra das amigas de Ana, com quem também estive este Verão.
-O quê? - murmurei, incrédula.
-A Patrícia comeu-a. Ela e mais algumas amigas dela. Foi bem-feita!
Quase deixei de ouvir Ana, durante algum tempo. Sentia-me tonta, e estava prestes a vomitar.
Entretanto, Ana continuava a tagarelar:
-Cortaram-na aos bocadinhos, guardaram a carne num frigorífico e foram comendo. É que a Patrícia faz parte de uma seita canibal qualquer, sabes? Se alguém chateia uma dela... pronto! Mas foi bem-feita, foi bem-feita...
Como é que era possível que a Ana fosse amiga de uma pessoa assim? Porque não tinha revelado isto a mais ninguém? Estaria com medo? E como é que era possível que a polícia nunca tivesse descoberto qualquer vestígio de um crime tão macabro:
-Onde é que elas escondem os ossos? - lembrei-me de perguntar.
A Ana assumiu uma expressão pensativa, e acabou por me dizer que não sabia.
-Mas agora eu tenho de ter cuidado com elas... - disse-me ela, num tom subitamente sério - É que eu e a Patrícia chateá-mo-nos, sabes?
Quando ela me contou isto, apeteceu-me desatar a chorar. O Tomás, por seu turno, ficou animadíssimo, comentando com a nossa prima como era empolgante ela fazer parte de semelhante drama.
Entretanto, eu fiquei tão nervosa que desatei a comer qualquer coisa e a falar, pelo que fui expulsa da sala. Lembro-me que na altura em que me expulsaram apareceu no ecrã um homem de aspecto rude, com uma palhinha na boca. Lembrou-me o Chuck Norris. Estava num campo aberto, cheio de capim.
Dei comigo numa imensa cidade greco-romana, que aos pouco uma equipa de arqueólogos ia escavando.
Tudo estava intacto: as esculturas, os edifícios... Mas era tudo de um branco imaculado: todas as pinturas de cores vivas tinham desaparecido.
Acabei por encontrar o meu professor de animação Zepe, que, juntamente com um um ou dois companheiros, explorava o achado.
Segui-os à distância (provavelmente com medo que o meu professor me perguntasse alguma em relação a um trabalho em atraso). Passei as mãos por um mosaico lindíssimo, feito de pequenas pedrinhas de um verde-jade, macias como seda.
Zepe acabou por se aperceber da minha presença e foi ao meu encontro. Revelou-me que uma escavação semelhante àquela estava naquele momento a ser feita no jardim da quinta onde moro.
Incrédula, fui a correr para casa.
Quando vi que a parte bonita do nosso jardim tinha desaparecido, e que no seu lugar havia um buracão colossal, pensei como o tio e a mãe ficariam aborrecidos.
Lá em baixo, a pelo menos 25 metros da superfície, uma antiga cidade greco-romana era redescoberta.
"Será que pediram permissão ao tio para escavar no jardim dele?" pensei "Será que lhe estão a pagar para estar aqui?".
Desci. Aquele achado era agora usado como uma espécie de parque temático: tal como em Óbidos se fazem feiras medievais, ali deparei-me com uma feira greco-romana. Muitas pessoas usavam togas.
Ao fim de algum tempo parei junto de uma banca onde se vendia fruta, construída sobre uma estrutura de madeira improvisada. Sentei-me junto a uma cesta e pus-me a comer frutos secos (que na realidade detesto).
De volta a casa, cruzei-me com o meu padrasto e disse-lhe:
-Tio! Já sabes que havia uma cidade greco-romana in-tei-ri-nha debaixo do jardim?!
-Oh! Mas isso via-se logo! - retorquiu ele. Deduzi que tivesse descoberto tal coisa através das irregularidades do terreno.
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