Pensem no planeta Terra. Agora imaginem que, em vez de os continentes estarem na sua superfície da esfera, a encararem o espaço, encontravam-se no seu interior, e encaravam-se uns aos outros. No meio, ficava o céu, com todas as suas nuvens, planetas e estrelas.
No meu sonho de anteontem, a Terra era assim.
Era de noite, e eu viajava de carro, ou mota, com o meu pai. O mundo parecia deserto. À nossa frente, só se via a estrada, à esquerda e à direita, uma extensa planície (Que, pelo seu tom amarelo-torrado, lembrava uma savana, e, acima das nossas cabeças, o céu, de várias cores maravilhosas: preto, azul-escuro, roxo.
O meu pai parou junto a uma tabuleta.
-Sabes onde estamos?
-Onde?
-Na Ásia.
Ao ouvir isto, fiz questão de sair da mota, ou do carro, para pisar chão asiático.
Assim que o fiz, o meu pai, que não saíra do veículo, acelerou e inverteu a marcha, contornando-me, como se fizesse tenção de me abandonar ali.
Sem pensar, agarrei com ambas as mãos o veículo, que imediatamente se deteve.
O meu pai saiu do carro e ficou comigo a olhar para o céu.
-Olha! - exclamei -A Europa.
No horizonte, a terra curvava-se para cima. Era por isso que, de onde estávamos, parecia que ela estava no céu.
Nesse momento, algo semelhante à Aurora Boreal irrompeu no céu, mesmo ao lado de Portugal. Pareciam grandes explosões de cor.
Mais tarde, eu, o meu irmão e o meu padrasto, discutíamos a possibilidade de uma viagem ao Brasil, onde um espectáculo semelhante ao que eu vira com o meu pai iria suceder.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
domingo, 29 de janeiro de 2012
O Paraíso
Tive este sonho durante as férias de Natal. Nem sei como quase me esqueci de o escrever aqui.
Estava em Lisboa, perto do túnel do Gril. Era noite cerrada, e só as luzes cor-de-laranja dos candeeiros de rua iluminavam a estrada.
Não havia ninguém à minha volta. Eu estava assustada, e não sabia o que fazer nem para onde ir. Mesmo assim, caminhava, como um autómato, em direcção ao túnel.
Aos poucos, comecei a distinguir na escuridão. Algumas olhavam à sua volta enquanto avançavam, como se tentassem descobrir onde estavam. Não demonstravam qualquer preocupação ou curiosidade. Limitavam-se a olhar atentamente à sua volta. Aparentavam aceitar o facto de estarem num lugar que desconheciam.
Sem se falarem, ou sequer olharem uns para os outros, iam todos para o túnel.
No meio da multidão, acabei por encontrar o meu irmão. Ele explicou-me que estávamos mortos, e que percorríamos o caminho para o paraíso.
Dentro do túnel, o chão não era alcatroado, mas de terra, e cada vez mais íngreme. Sob o tecto cinzento, iluminado por uma forte luz branca artificial, cresciam algumas algumas plantas. Sobretudo ervas, mas também árvores: carvalhos. Eram, todavia, pequenos, e a folhagem era tão escassa que não bastava para formar uma copa. As suas raízes sobressaíam da terra, e estendiam-se na nossa direcção como dedos de bruxa: magros, retorcidos, acusadores. Também não faltavam pedras e ossos humanos.
Conforme subíamos, agarrava-mo-nos a tudo isso.
Estávamos exaustos e doridos, mas o paraíso era mesmo lá em cima, e se continuássemos seríamos premiados com uma estadia eterna. Se desistíssemos, estaríamos condenados a deambular no limbo, para sempre.
Por vezes, sentia o meu irmão agarrar-se aos meus tornozelos, por não encontrar nenhum ponto de apoio melhor. Nessas alturas, eu ficava imóvel, e agarrava-me com toda a força ao que estivesse ao meu alcance, rezando para que aguentasse o peso dos nossos corpos.
Cheguei ao cimo primeiro que o meu irmão. Hesitante, palpei a terra plana, mas acreditando no que via. Subi, e, para minha grande surpresa, não vi um grande portão dourado, rodeado de nuvens e do céu. Em vez disso, verifiquei que a cerca de um metro do abismo, se erguia um parede cinzenta, e sobre ela assentava o tecto que cobria todo o túnel. Ali, era tão baixo que eu mal conseguia erguer-me. Era um espaço minúsculo. Para além de mim, os únicos ocupantes eram dois homens corpulentos, de lindo cabelos encaracolados. Confortavelmente alojados (cada um sentado na respectiva cadeira de praia), eles observavam a labuta da multidão.
Fiquei tão indignada que me aproximei do precipício e, com um grito, ordenei aos mortos que se detivessem. Descrevi-lhes o que encontrara e acrescentei que o paraíso não existia.
Devastados, alguns largaram a parede de terra e deixaram-se cair. Mas a maioria desceu lentamente, demasiado desiludida para expressar sequer o seu sofrimento. Resignados, deixaram o túnel e regressaram cabisbaixos ao limbo.
Quando já todos haviam partido, eu sentei-me ao lado dos homens, para descansar e chorar.
Foi então que um deles se levantou, passou por mim, e, a um canto da parede cinzenta, abriu uma minúscula porta.
-Tu ficaste. - disse-me ele. -Por isso, podes ir para o Paraíso.
Parei imediatamente de chorar. De queixo caído, olhei por instantes para o homem, que segurava entre dois dedos a maçaneta da minúscula porta. Só então me apercebi que ele tinha um majestoso par de asas.
A culpa abateu-se sobre mim, alojando-se no meu peito sob a forma de um peso atroz e doloroso.
-Espera. -pedi ao anjo -Tenho de chamar os outros e explicar-lhes o que aconteceu.
-Não. - determinou o anjo. -Eles já não podem entrar.
-Então deixa-me chamar só o meu irmão. -roguei.
-Não. - insistiu o anjo.
-Porquê?
-Só pode entrar no paraíso quem tem fé nele.
-O meu irmão tinha fé! Eu tirei-lha!
Cansado de me ouvir, o anjo agarrou-me e enfiou-me à força no paraíso, enquanto eu me debatia e lhe gritava que estava a cometer uma terrível injustiça, porque, de todas as pessoas que subiam a parede, eu era de todas elas a que menos fé tivera, chegando mesmo a tirar-lhes a deles.
Ele fingiu que não me ouviu, e fechou a porta atrás de mim.
Tentei abri-la novamente, mas ela não cedeu nem um pouco. Mas não ia desistir: estava determinada a avisar o meu irmão do erro que cometera e que o condenara. De alguma maneira, eu trá-lo-ia para ao pé de mim.
Olhei à minha volta. Ao distinguir algumas grandes cabines telefónicas, de um azul berrante, tentei contactar o meu irmão. Mas era escusado: aqueles telefones só recebiam chamadas. Tentei, de seguida, enviar-lhe um e-mail através de umas máquinas muito semelhantes a caixas multibanco. Mas, tal como os telefones, estas máquinas podiam apenas receber mensagens, e nunca enviá-las.
Procurei uma saída do Paraíso. Uma porta, uma janela, um buraco; o que quer que fosse. Se encontrasse uma maneira de sair sem que o anjo me visse, poderia procurar o meu irmão e depois regressar com ele. Mas a única maneira de entrar no paraíso era através daquela minúscula porta (tão feia) e, depois de lá se estar, era impossível sair.
É claro que a minha obstinação não passou despercebida ao anjo. Chegámos a sentar-nos lado a lado e ele ouviu-me desabafar e chorar durante horas a fio, ao longo de vários dias.
Quando finalmente desisti de encontrar uma maneira de contactar o meu irmão, ou de fugir do paraíso para o ir procurar, fui ao encontro do anjo, de quem me tornara amiga, e pedi-lhe que, ao menos, me deixasse regressar ao limbo para ficar com o Tomás.
Comovido pelo meu amor e determinação, o anjo acedeu a ir ele próprio buscar o meu irmão.
Não houve, na narração deste sonho, espaço para uma descrição do paraíso. A verdade é que era parecidíssimo com a Avenue Louise, de Bruxelas. Mas não se viam carros em lado nenhum, e crescia um pouco de erva por todo o lado.
Estava em Lisboa, perto do túnel do Gril. Era noite cerrada, e só as luzes cor-de-laranja dos candeeiros de rua iluminavam a estrada.
Não havia ninguém à minha volta. Eu estava assustada, e não sabia o que fazer nem para onde ir. Mesmo assim, caminhava, como um autómato, em direcção ao túnel.
Aos poucos, comecei a distinguir na escuridão. Algumas olhavam à sua volta enquanto avançavam, como se tentassem descobrir onde estavam. Não demonstravam qualquer preocupação ou curiosidade. Limitavam-se a olhar atentamente à sua volta. Aparentavam aceitar o facto de estarem num lugar que desconheciam.
Sem se falarem, ou sequer olharem uns para os outros, iam todos para o túnel.
No meio da multidão, acabei por encontrar o meu irmão. Ele explicou-me que estávamos mortos, e que percorríamos o caminho para o paraíso.
Dentro do túnel, o chão não era alcatroado, mas de terra, e cada vez mais íngreme. Sob o tecto cinzento, iluminado por uma forte luz branca artificial, cresciam algumas algumas plantas. Sobretudo ervas, mas também árvores: carvalhos. Eram, todavia, pequenos, e a folhagem era tão escassa que não bastava para formar uma copa. As suas raízes sobressaíam da terra, e estendiam-se na nossa direcção como dedos de bruxa: magros, retorcidos, acusadores. Também não faltavam pedras e ossos humanos.
Conforme subíamos, agarrava-mo-nos a tudo isso.
Estávamos exaustos e doridos, mas o paraíso era mesmo lá em cima, e se continuássemos seríamos premiados com uma estadia eterna. Se desistíssemos, estaríamos condenados a deambular no limbo, para sempre.
Por vezes, sentia o meu irmão agarrar-se aos meus tornozelos, por não encontrar nenhum ponto de apoio melhor. Nessas alturas, eu ficava imóvel, e agarrava-me com toda a força ao que estivesse ao meu alcance, rezando para que aguentasse o peso dos nossos corpos.
Cheguei ao cimo primeiro que o meu irmão. Hesitante, palpei a terra plana, mas acreditando no que via. Subi, e, para minha grande surpresa, não vi um grande portão dourado, rodeado de nuvens e do céu. Em vez disso, verifiquei que a cerca de um metro do abismo, se erguia um parede cinzenta, e sobre ela assentava o tecto que cobria todo o túnel. Ali, era tão baixo que eu mal conseguia erguer-me. Era um espaço minúsculo. Para além de mim, os únicos ocupantes eram dois homens corpulentos, de lindo cabelos encaracolados. Confortavelmente alojados (cada um sentado na respectiva cadeira de praia), eles observavam a labuta da multidão.
Fiquei tão indignada que me aproximei do precipício e, com um grito, ordenei aos mortos que se detivessem. Descrevi-lhes o que encontrara e acrescentei que o paraíso não existia.
Devastados, alguns largaram a parede de terra e deixaram-se cair. Mas a maioria desceu lentamente, demasiado desiludida para expressar sequer o seu sofrimento. Resignados, deixaram o túnel e regressaram cabisbaixos ao limbo.
Quando já todos haviam partido, eu sentei-me ao lado dos homens, para descansar e chorar.
Foi então que um deles se levantou, passou por mim, e, a um canto da parede cinzenta, abriu uma minúscula porta.
-Tu ficaste. - disse-me ele. -Por isso, podes ir para o Paraíso.
Parei imediatamente de chorar. De queixo caído, olhei por instantes para o homem, que segurava entre dois dedos a maçaneta da minúscula porta. Só então me apercebi que ele tinha um majestoso par de asas.
A culpa abateu-se sobre mim, alojando-se no meu peito sob a forma de um peso atroz e doloroso.
-Espera. -pedi ao anjo -Tenho de chamar os outros e explicar-lhes o que aconteceu.
-Não. - determinou o anjo. -Eles já não podem entrar.
-Então deixa-me chamar só o meu irmão. -roguei.
-Não. - insistiu o anjo.
-Porquê?
-Só pode entrar no paraíso quem tem fé nele.
-O meu irmão tinha fé! Eu tirei-lha!
Cansado de me ouvir, o anjo agarrou-me e enfiou-me à força no paraíso, enquanto eu me debatia e lhe gritava que estava a cometer uma terrível injustiça, porque, de todas as pessoas que subiam a parede, eu era de todas elas a que menos fé tivera, chegando mesmo a tirar-lhes a deles.
Ele fingiu que não me ouviu, e fechou a porta atrás de mim.
Tentei abri-la novamente, mas ela não cedeu nem um pouco. Mas não ia desistir: estava determinada a avisar o meu irmão do erro que cometera e que o condenara. De alguma maneira, eu trá-lo-ia para ao pé de mim.
Olhei à minha volta. Ao distinguir algumas grandes cabines telefónicas, de um azul berrante, tentei contactar o meu irmão. Mas era escusado: aqueles telefones só recebiam chamadas. Tentei, de seguida, enviar-lhe um e-mail através de umas máquinas muito semelhantes a caixas multibanco. Mas, tal como os telefones, estas máquinas podiam apenas receber mensagens, e nunca enviá-las.
Procurei uma saída do Paraíso. Uma porta, uma janela, um buraco; o que quer que fosse. Se encontrasse uma maneira de sair sem que o anjo me visse, poderia procurar o meu irmão e depois regressar com ele. Mas a única maneira de entrar no paraíso era através daquela minúscula porta (tão feia) e, depois de lá se estar, era impossível sair.
É claro que a minha obstinação não passou despercebida ao anjo. Chegámos a sentar-nos lado a lado e ele ouviu-me desabafar e chorar durante horas a fio, ao longo de vários dias.
Quando finalmente desisti de encontrar uma maneira de contactar o meu irmão, ou de fugir do paraíso para o ir procurar, fui ao encontro do anjo, de quem me tornara amiga, e pedi-lhe que, ao menos, me deixasse regressar ao limbo para ficar com o Tomás.
Comovido pelo meu amor e determinação, o anjo acedeu a ir ele próprio buscar o meu irmão.
Não houve, na narração deste sonho, espaço para uma descrição do paraíso. A verdade é que era parecidíssimo com a Avenue Louise, de Bruxelas. Mas não se viam carros em lado nenhum, e crescia um pouco de erva por todo o lado.
sábado, 28 de janeiro de 2012
Shhhhh!
Hoje sonhei que estava num grande edifício de paredes cinzentas, juntamente com um grupo de jovens e crianças. Parecia que por todo o lado havia cozinhas e cozinheiros.
Ao redor deste edifício, existia uma plantação de milho, tão vasta que, não importa em que direcção se olhasse, era a única coisa que se via até ao horizonte.
Nós queríamos ir passear nessa plantação.
Descontraidamente, lá fomos nós.
Quando já lá estávamos, lembrei-me de qualquer coisa que devia ter trazido comigo. Voltei atrás para a ir buscar.
Lembro-me que para o fazer, tive de saltar para um fosso, com uns três metros de profundidade. Descalcei-me antes de fazê-lo, e, no ar, pensei como fora estúpida: ia certamente partir os pezinhos todos. Se fosse só isso que eu partisse.
Para minha surpresa, não senti dor nenhuma, e num instante me pus de pé e desatei a correr em direcção ao edifício.
A caminho de uma das cozinhas, reparei num estranho elevador. Sempre que ele subia, havia abaixo dele um outro elevador pendurado, e, por baixo desse elevador, um grande cilindro de vidro cheio de água imunda, onde um homem estava amarrado. Cheia de medo, e preocupada com o homem, aproximei-me. Nesse instante, ele emergiu, enchendo os pulmões de ar.
-Meu deus! -exclamei eu.
Ele era jovem, tinha o cabelo curto e espetado, e uma barba de vários de dias por fazer. O pêlo negro contrastava com a pele branca. Não me lembro do que ele me disse, mas estava desesperado.
Ouvi então um outro homem aproximar-se. Era baixo e gordo: a barriga opulenta quase fazia saltar os botões da camisola vermelha de xadrez. O que restava do seu cabelo negro rodeava, como se uma auréola se tratasse, uma reluzente careca no cimo do seu crânio. Um bigode muito feio é do que lembro melhor da sua cara bochechuda.
Recuei vários passos, dizendo:
-Eu não conto a ninguém! Prometo!
-Não vais a lado nenhum.
-Eu não conto a ninguém! - insisti, fazendo cara de menina ingénua e indefesa.
-Está bem... -cedeu o homem, movido pela minha patética expressão. - Mas dá-me a tua mão.
-P-para quê?
-Não sais daqui sem um aviso, pelo menos. - disse ele, segurando uma faca.
"Ele vai cortar-me a mão!"
-Não conto a ninguém, já disse!
-É só um cortezinho...
-Não confio em si.
-Um cortezinho, vá lá... - ele falava como se fosse um médico a consolar uma criança prestes a ser vacinada.
A tremer, deixei que ele pegasse na minha mão direita e fizesse um pequeno corte na palma. Assim que ele me largou, desatei a correr, a pensar se devia ou não contar a alguém o que acontecera.
Aquele pobre homem estava a ser torturado, e se eu não fizesse nada, dentro de pouco tempo talvez estivesse morto. Eu era a sua única esperança.
Mas quais seriam as consequências para mim?
E se fosse eu no lugar dele?
Será que ele me ajudaria ou não?
-Mãe, mãe, tenho de falar contigo! - choraminguei, assim que encontrei a minha mãe.
Num sítio isolado, contei-lhe o que se passara. Ela insistiu para que eu mantivesse a promessa que fizera, mas eu sentia-me esmagada pela culpa.
Não sei que decisão acabei por tomar.
Ao redor deste edifício, existia uma plantação de milho, tão vasta que, não importa em que direcção se olhasse, era a única coisa que se via até ao horizonte.
Nós queríamos ir passear nessa plantação.
Descontraidamente, lá fomos nós.
Quando já lá estávamos, lembrei-me de qualquer coisa que devia ter trazido comigo. Voltei atrás para a ir buscar.
Lembro-me que para o fazer, tive de saltar para um fosso, com uns três metros de profundidade. Descalcei-me antes de fazê-lo, e, no ar, pensei como fora estúpida: ia certamente partir os pezinhos todos. Se fosse só isso que eu partisse.
Para minha surpresa, não senti dor nenhuma, e num instante me pus de pé e desatei a correr em direcção ao edifício.
A caminho de uma das cozinhas, reparei num estranho elevador. Sempre que ele subia, havia abaixo dele um outro elevador pendurado, e, por baixo desse elevador, um grande cilindro de vidro cheio de água imunda, onde um homem estava amarrado. Cheia de medo, e preocupada com o homem, aproximei-me. Nesse instante, ele emergiu, enchendo os pulmões de ar.
-Meu deus! -exclamei eu.
Ele era jovem, tinha o cabelo curto e espetado, e uma barba de vários de dias por fazer. O pêlo negro contrastava com a pele branca. Não me lembro do que ele me disse, mas estava desesperado.
Ouvi então um outro homem aproximar-se. Era baixo e gordo: a barriga opulenta quase fazia saltar os botões da camisola vermelha de xadrez. O que restava do seu cabelo negro rodeava, como se uma auréola se tratasse, uma reluzente careca no cimo do seu crânio. Um bigode muito feio é do que lembro melhor da sua cara bochechuda.
Recuei vários passos, dizendo:
-Eu não conto a ninguém! Prometo!
-Não vais a lado nenhum.
-Eu não conto a ninguém! - insisti, fazendo cara de menina ingénua e indefesa.
-Está bem... -cedeu o homem, movido pela minha patética expressão. - Mas dá-me a tua mão.
-P-para quê?
-Não sais daqui sem um aviso, pelo menos. - disse ele, segurando uma faca.
"Ele vai cortar-me a mão!"
-Não conto a ninguém, já disse!
-É só um cortezinho...
-Não confio em si.
-Um cortezinho, vá lá... - ele falava como se fosse um médico a consolar uma criança prestes a ser vacinada.
A tremer, deixei que ele pegasse na minha mão direita e fizesse um pequeno corte na palma. Assim que ele me largou, desatei a correr, a pensar se devia ou não contar a alguém o que acontecera.
Aquele pobre homem estava a ser torturado, e se eu não fizesse nada, dentro de pouco tempo talvez estivesse morto. Eu era a sua única esperança.
Mas quais seriam as consequências para mim?
E se fosse eu no lugar dele?
Será que ele me ajudaria ou não?
-Mãe, mãe, tenho de falar contigo! - choraminguei, assim que encontrei a minha mãe.
Num sítio isolado, contei-lhe o que se passara. Ela insistiu para que eu mantivesse a promessa que fizera, mas eu sentia-me esmagada pela culpa.
Não sei que decisão acabei por tomar.
Presa
Já não me lembro quando tive estes sonhos. Acho que foi nas férias de Natal...
Foram dois sonhos: um filme, e a respectiva sequela. Eu era a protagonista, e, ao mesmo tempo a narradora. Só que, ao contrário do que normalmente sucede nestes casos, eu era uma narradora ausente e omnisciente, e, ao mesmo tempo, a personagem principal. A história não se tratava de uma recordação, ou qualquer outro relato feito em retrospectiva. Eu era, literalmente, duas entidades diferentes ao mesmo tempo.
Estava presa, juntamente com outros colegas, num edifício gigantesco. Uma mistura bizarra da antiga António Arroio, Belas-Artes, e algo mais... É difícil definir o terceiro elemento. Podia ser um armazém, ou as escadas de metal a que a oficina dos meus avós paternos ia dar, rodeadas de altíssimas paredes cinzentas e feias, ou então o estranho cenário de um antigo concurso de televisão, em que três concorrentes tinham de roubar três malas carregadas de dinheiro. No fim, só um ficava com o dinheiro.
Aquele lugar onde estávamos era macabro, bizarro, digno de um filme de terror. Parecia estar abandonado há muito tempo. Tudo era ferrugento, frágil e instável. Estava sempre escuro; ainda assim, uma constante e fraca luz de um tom verde doentio pairava sobre todas as divisões, sem que se conseguisse perceber qual era a sua origem.
Era muito fácil perder-mo-nos: o edifício era um labirinto em constante mudança. Era impossível voltar a encontrar um sítio depois de lhe voltarmos as costas.
De vez em quando cruzáva-mo-nos com zombies, mas desde que fossemos cuidadosos, nunca eram suficientes para serem perigosos.
Das poucas pessoas que estavam comigo, só me lembro de uma: a Rafaela. Trata-se de umca colega baixinha, de cara redonda acentuada pelo cabelo cortado com franja.
Ao passarmos por uma porta metálica, com uma janela de vidro (daqueles apenas semi-transparentes, e que distorcem as formas) vimos pendurado na maçaneta um papel escrito À pressa que dizia: "não abrir porta, zombie de aluna".
-Coitada! - exclamou Rafaela - Ninguém devia ficar preso para sempre!
-Aquela coisa não é uma pessoa. - disse-lhe eu - Vamos embora.
-Mas já foi. Temos de a soltar!
-Rafaela, não!
Tarde de mais. Rafaela abriu a porta, e, no instante seguinte, apareceu uma carcaça putrefacta que só com alguma dificuldade se poderia identificar como um cadáver de um ser humano. O monstro quase correu para nós, com aquilo que em tempos tinham sido os seus braços esticados na nossa direcção.
A compaixão de Rafaela desapareceu, e, tomada de medo, ela empurrou-me contra a parede do estreito corredor para conseguir passar e fugir. Estava nas minhas mãos voltar a fechar a porta.
O monstro já estava muito próximo, pelo que tive de recuar. Mas, como se se tratasse de um número de magia, o corredor estava agora mais longo, e passados alguns metros vi que tinha acabado de passar por uma segunda porta. Fechei-a, e tentei com dedos trémulos trancá-la. Não foi fácil, porque do outro lado a morta ora batia na porta ora puxava a fechadura, com muito mais força do que eu esperava que ela tivesse. Temi que ela conseguisse partir o vidro e me alcançasse.
Felizmente, consegui trancar a porta e escapar ilesa.
Depois disto só me lembro de estar num local semelhante a um laboratório de fotografia, cheio de prateleiras de químicos, e outros materiais necessários a essa arte. Um zombie, gordo e com uma camisola de xadrez, deambulava no pequeno espaço.
A chave para sair do edifício estava dentro dele.
Silenciosamente, para que ele não se apercebesse da minha presença, agarrei uma das garrafas de químicos e despejei-lha em cima.
Ninguém usa ácidos num laboratório de fotografia, pelo menos ninguém que eu conheça. Mas o monstro gritou de dor e uivou como um louco, ao mesmo tempo que o seu abdómen gorduroso era corroído pelo liquido. Não consigo perceber o motivo do que fez a seguir. Agarrou uma longa e fina serra (cujo lugar mais apropriado seria uma oficina de carpintaria e não aquele onde se encontrava) e começou a cortar-se aos bocados.
Tanto se cortou que acabou por cair morto no chão, numa grande poça do seu próprio sangue, carne, gordura e ossos.
Demasiado desesperada para ter nojo ou medo, aproximei-me, remexi o que restava da criatura, e quando por fim encontrei uma chave imunda agarrei-a com prazer e voltei para junto dos meus companheiros.
Não me lembro do final do sonho, mas acho que escapámos.
Na sequela do filme, ou seja, no segundo sonho, eu era uma professora naquele mesmo edifício. Estava a descer umas longuíssimas escadas em caracol. Eram de pedra. Mármore branco, penso. As paredes eram espaçosas, pintadas em tom de creme, com discretos brilhantes. Apesar de irregulares, eram macias: tal e qual como as paredes do prédio onde vivo, em Massamá. Não havia janelas, e eu não sabia há quanto tempo estava a descer as escadas, nem por quanto tempo teria de continuar.
Seguia-me uma multidão de alunos. Não sei se eram zombies ou fantasmas, ou qualquer outro tipo de monstros. Sei, no entanto, que não podiam fazer-me mal até ao momento em que eu demonstrasse que sabia que estava em perigo, ou até aceder a ir onde eles me queriam levar.
Eles falavam-me carinhosamente, convidando-me a acompanhá-los. Eu tinha de saber recusar os convites com gentileza. Eles fartavam-se de me fazer perguntas, e eu mentia-lhes com habilidade, certificando-me de que a teia que tecia era uniforme.
Estava cheia de medo. Mas não podia demonstrá-lo. Tinha os nervos em franja, e os meus dedos e as minhas pernas tremiam. Mas tinha de me comportar com calma e elegância, por isso cerrava as mãos em punhos e punha cuidadosamente um pé à frente do outro.
Quando vi a porta de saída nem quis acreditar. Mas não podia correr. Sempre devagar, caminhei para a porta, despedi-me deles, e saí.
Foram dois sonhos: um filme, e a respectiva sequela. Eu era a protagonista, e, ao mesmo tempo a narradora. Só que, ao contrário do que normalmente sucede nestes casos, eu era uma narradora ausente e omnisciente, e, ao mesmo tempo, a personagem principal. A história não se tratava de uma recordação, ou qualquer outro relato feito em retrospectiva. Eu era, literalmente, duas entidades diferentes ao mesmo tempo.
Estava presa, juntamente com outros colegas, num edifício gigantesco. Uma mistura bizarra da antiga António Arroio, Belas-Artes, e algo mais... É difícil definir o terceiro elemento. Podia ser um armazém, ou as escadas de metal a que a oficina dos meus avós paternos ia dar, rodeadas de altíssimas paredes cinzentas e feias, ou então o estranho cenário de um antigo concurso de televisão, em que três concorrentes tinham de roubar três malas carregadas de dinheiro. No fim, só um ficava com o dinheiro.
Aquele lugar onde estávamos era macabro, bizarro, digno de um filme de terror. Parecia estar abandonado há muito tempo. Tudo era ferrugento, frágil e instável. Estava sempre escuro; ainda assim, uma constante e fraca luz de um tom verde doentio pairava sobre todas as divisões, sem que se conseguisse perceber qual era a sua origem.
Era muito fácil perder-mo-nos: o edifício era um labirinto em constante mudança. Era impossível voltar a encontrar um sítio depois de lhe voltarmos as costas.
De vez em quando cruzáva-mo-nos com zombies, mas desde que fossemos cuidadosos, nunca eram suficientes para serem perigosos.
Das poucas pessoas que estavam comigo, só me lembro de uma: a Rafaela. Trata-se de umca colega baixinha, de cara redonda acentuada pelo cabelo cortado com franja.
Ao passarmos por uma porta metálica, com uma janela de vidro (daqueles apenas semi-transparentes, e que distorcem as formas) vimos pendurado na maçaneta um papel escrito À pressa que dizia: "não abrir porta, zombie de aluna".
-Coitada! - exclamou Rafaela - Ninguém devia ficar preso para sempre!
-Aquela coisa não é uma pessoa. - disse-lhe eu - Vamos embora.
-Mas já foi. Temos de a soltar!
-Rafaela, não!
Tarde de mais. Rafaela abriu a porta, e, no instante seguinte, apareceu uma carcaça putrefacta que só com alguma dificuldade se poderia identificar como um cadáver de um ser humano. O monstro quase correu para nós, com aquilo que em tempos tinham sido os seus braços esticados na nossa direcção.
A compaixão de Rafaela desapareceu, e, tomada de medo, ela empurrou-me contra a parede do estreito corredor para conseguir passar e fugir. Estava nas minhas mãos voltar a fechar a porta.
O monstro já estava muito próximo, pelo que tive de recuar. Mas, como se se tratasse de um número de magia, o corredor estava agora mais longo, e passados alguns metros vi que tinha acabado de passar por uma segunda porta. Fechei-a, e tentei com dedos trémulos trancá-la. Não foi fácil, porque do outro lado a morta ora batia na porta ora puxava a fechadura, com muito mais força do que eu esperava que ela tivesse. Temi que ela conseguisse partir o vidro e me alcançasse.
Felizmente, consegui trancar a porta e escapar ilesa.
Depois disto só me lembro de estar num local semelhante a um laboratório de fotografia, cheio de prateleiras de químicos, e outros materiais necessários a essa arte. Um zombie, gordo e com uma camisola de xadrez, deambulava no pequeno espaço.
A chave para sair do edifício estava dentro dele.
Silenciosamente, para que ele não se apercebesse da minha presença, agarrei uma das garrafas de químicos e despejei-lha em cima.
Ninguém usa ácidos num laboratório de fotografia, pelo menos ninguém que eu conheça. Mas o monstro gritou de dor e uivou como um louco, ao mesmo tempo que o seu abdómen gorduroso era corroído pelo liquido. Não consigo perceber o motivo do que fez a seguir. Agarrou uma longa e fina serra (cujo lugar mais apropriado seria uma oficina de carpintaria e não aquele onde se encontrava) e começou a cortar-se aos bocados.
Tanto se cortou que acabou por cair morto no chão, numa grande poça do seu próprio sangue, carne, gordura e ossos.
Demasiado desesperada para ter nojo ou medo, aproximei-me, remexi o que restava da criatura, e quando por fim encontrei uma chave imunda agarrei-a com prazer e voltei para junto dos meus companheiros.
Não me lembro do final do sonho, mas acho que escapámos.
Na sequela do filme, ou seja, no segundo sonho, eu era uma professora naquele mesmo edifício. Estava a descer umas longuíssimas escadas em caracol. Eram de pedra. Mármore branco, penso. As paredes eram espaçosas, pintadas em tom de creme, com discretos brilhantes. Apesar de irregulares, eram macias: tal e qual como as paredes do prédio onde vivo, em Massamá. Não havia janelas, e eu não sabia há quanto tempo estava a descer as escadas, nem por quanto tempo teria de continuar.
Seguia-me uma multidão de alunos. Não sei se eram zombies ou fantasmas, ou qualquer outro tipo de monstros. Sei, no entanto, que não podiam fazer-me mal até ao momento em que eu demonstrasse que sabia que estava em perigo, ou até aceder a ir onde eles me queriam levar.
Eles falavam-me carinhosamente, convidando-me a acompanhá-los. Eu tinha de saber recusar os convites com gentileza. Eles fartavam-se de me fazer perguntas, e eu mentia-lhes com habilidade, certificando-me de que a teia que tecia era uniforme.
Estava cheia de medo. Mas não podia demonstrá-lo. Tinha os nervos em franja, e os meus dedos e as minhas pernas tremiam. Mas tinha de me comportar com calma e elegância, por isso cerrava as mãos em punhos e punha cuidadosamente um pé à frente do outro.
Quando vi a porta de saída nem quis acreditar. Mas não podia correr. Sempre devagar, caminhei para a porta, despedi-me deles, e saí.
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