domingo, 29 de janeiro de 2012

O Paraíso

Tive este sonho durante as férias de Natal. Nem sei como quase me esqueci de o escrever aqui.
Estava em Lisboa, perto do túnel do Gril. Era noite cerrada, e só as luzes cor-de-laranja dos candeeiros de rua iluminavam a estrada.
Não havia ninguém à minha volta. Eu estava assustada, e não sabia o que fazer nem para onde ir. Mesmo assim, caminhava, como um autómato, em direcção ao túnel.
Aos poucos, comecei a distinguir na escuridão. Algumas olhavam à sua volta enquanto avançavam, como se tentassem descobrir onde estavam. Não demonstravam qualquer preocupação ou curiosidade. Limitavam-se a olhar atentamente à sua volta. Aparentavam aceitar o facto de estarem num lugar que desconheciam.
Sem se falarem, ou sequer olharem uns para os outros, iam todos para o túnel.
No meio da multidão, acabei por encontrar o meu irmão. Ele explicou-me que estávamos mortos, e que percorríamos o caminho para o paraíso.
Dentro do túnel, o chão não era alcatroado, mas de terra, e cada vez mais íngreme. Sob o tecto cinzento, iluminado por uma forte luz branca artificial, cresciam algumas algumas plantas. Sobretudo ervas, mas também árvores: carvalhos. Eram, todavia, pequenos, e a folhagem era tão escassa que não bastava para formar uma copa. As suas raízes sobressaíam da terra, e estendiam-se na nossa direcção como dedos de bruxa: magros, retorcidos, acusadores. Também não faltavam pedras e ossos humanos.
Conforme subíamos, agarrava-mo-nos a tudo isso.
Estávamos exaustos e doridos, mas o paraíso era mesmo lá em cima, e se continuássemos seríamos premiados com uma estadia eterna. Se desistíssemos, estaríamos condenados a deambular no limbo, para sempre.
Por vezes, sentia o meu irmão agarrar-se aos meus tornozelos, por não encontrar nenhum ponto de apoio melhor. Nessas alturas, eu ficava imóvel, e agarrava-me com toda a força ao que estivesse ao meu alcance, rezando para que aguentasse o peso dos nossos corpos.
Cheguei ao cimo primeiro que o meu irmão. Hesitante, palpei a terra plana, mas acreditando no que via. Subi, e, para minha grande surpresa, não vi um grande portão dourado, rodeado de nuvens e do céu. Em vez disso, verifiquei que a cerca de um metro do abismo, se erguia um parede cinzenta, e sobre ela assentava o tecto que cobria todo o túnel. Ali, era tão baixo que eu mal conseguia erguer-me. Era um espaço minúsculo. Para além de mim, os únicos ocupantes eram dois homens corpulentos, de lindo cabelos encaracolados. Confortavelmente alojados (cada um sentado na respectiva cadeira de praia), eles observavam a labuta da multidão.
Fiquei tão indignada que me aproximei do precipício e, com um grito, ordenei aos mortos que se detivessem. Descrevi-lhes o que encontrara e acrescentei que o paraíso não existia.
Devastados, alguns largaram a parede de terra e deixaram-se cair. Mas a maioria desceu lentamente, demasiado desiludida para expressar sequer o seu sofrimento. Resignados, deixaram o túnel e regressaram cabisbaixos ao limbo.
Quando já todos haviam partido, eu sentei-me ao lado dos homens, para descansar e chorar.
Foi então que um deles se levantou, passou por mim, e, a um canto da parede cinzenta, abriu uma minúscula porta.
-Tu ficaste. - disse-me ele. -Por isso, podes ir para o Paraíso.
Parei imediatamente de chorar. De queixo caído, olhei por instantes para o homem, que segurava entre dois dedos a maçaneta da minúscula porta. Só então me apercebi que ele tinha um majestoso par de asas.
A culpa abateu-se sobre mim, alojando-se no meu peito sob a forma de um peso atroz e doloroso.
-Espera. -pedi ao anjo -Tenho de chamar os outros e explicar-lhes o que aconteceu.
-Não. - determinou o anjo. -Eles já não podem entrar.
-Então deixa-me chamar só o meu irmão. -roguei.
-Não. - insistiu o anjo.
-Porquê?
-Só pode entrar no paraíso quem tem fé nele.
-O meu irmão tinha fé! Eu tirei-lha!
Cansado de me ouvir, o anjo agarrou-me e enfiou-me à força no paraíso, enquanto eu me debatia e lhe gritava que estava a cometer uma terrível injustiça, porque, de todas as pessoas que subiam a parede, eu era de todas elas a que menos fé tivera, chegando mesmo a tirar-lhes a deles.
Ele fingiu que não me ouviu, e fechou a porta atrás de mim.
Tentei abri-la novamente, mas ela não cedeu nem um pouco. Mas não ia desistir: estava determinada a avisar o meu irmão do erro que cometera e que o condenara. De alguma maneira, eu trá-lo-ia para ao pé de mim.
Olhei à minha volta. Ao distinguir algumas grandes cabines telefónicas, de um azul berrante, tentei contactar o meu irmão. Mas era escusado: aqueles telefones só recebiam chamadas. Tentei, de seguida, enviar-lhe um e-mail através de umas máquinas muito semelhantes a caixas multibanco. Mas, tal como os telefones, estas máquinas podiam apenas receber mensagens, e nunca enviá-las.
Procurei uma saída do Paraíso. Uma porta, uma janela, um buraco; o que quer que fosse. Se encontrasse uma maneira de sair sem que o anjo me visse, poderia procurar o meu irmão e depois regressar com ele. Mas a única maneira de entrar no paraíso era através daquela minúscula porta (tão feia) e, depois de lá se estar, era impossível sair.
É claro que a minha obstinação não passou despercebida ao anjo. Chegámos a sentar-nos lado a lado e ele ouviu-me desabafar e chorar durante horas a fio, ao longo de vários dias.
Quando finalmente desisti de encontrar uma maneira de contactar o meu irmão, ou de fugir do paraíso para o ir procurar, fui ao encontro do anjo, de quem me tornara amiga, e pedi-lhe que, ao menos, me deixasse regressar ao limbo para ficar com o Tomás.
Comovido pelo meu amor e determinação, o anjo acedeu a ir ele próprio buscar o meu irmão.

Não houve, na narração deste sonho, espaço para uma descrição do paraíso. A verdade é que era parecidíssimo com a Avenue Louise, de Bruxelas. Mas não se viam carros em lado nenhum, e crescia um pouco de erva por todo o lado.

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