sábado, 28 de janeiro de 2012

Presa

Já não me lembro quando tive estes sonhos. Acho que foi nas férias de Natal...
Foram dois sonhos: um filme, e a respectiva sequela. Eu era a protagonista, e, ao mesmo tempo a narradora. Só que, ao contrário do que normalmente sucede nestes casos, eu era uma narradora ausente e omnisciente, e, ao mesmo tempo, a personagem principal. A história não se tratava de uma recordação, ou qualquer outro relato feito em retrospectiva. Eu era, literalmente, duas entidades diferentes ao mesmo tempo.
Estava presa, juntamente com outros colegas, num edifício gigantesco. Uma mistura bizarra da antiga António Arroio, Belas-Artes, e algo mais... É difícil definir o terceiro elemento. Podia ser um armazém, ou as escadas de metal a que a oficina dos meus avós paternos ia dar, rodeadas de altíssimas paredes cinzentas e feias, ou então o estranho cenário de um antigo concurso de televisão, em que três concorrentes tinham de roubar três malas carregadas de dinheiro. No fim, só um ficava com o dinheiro.
Aquele lugar onde estávamos era macabro, bizarro, digno de um filme de terror. Parecia estar abandonado há muito tempo. Tudo era ferrugento, frágil e instável. Estava sempre escuro; ainda assim, uma constante e fraca luz de um tom verde doentio pairava sobre todas as divisões, sem que se conseguisse perceber qual era a sua origem.
Era muito fácil perder-mo-nos: o edifício era um labirinto em constante mudança. Era impossível voltar a encontrar um sítio depois de lhe voltarmos as costas.
De vez em quando cruzáva-mo-nos com zombies, mas desde que fossemos cuidadosos, nunca eram suficientes para serem perigosos.
Das poucas pessoas que estavam comigo, só me lembro de uma: a Rafaela. Trata-se de umca colega baixinha, de cara redonda acentuada pelo cabelo cortado com franja.
Ao passarmos por uma porta metálica, com uma janela de vidro (daqueles apenas semi-transparentes, e que distorcem as formas) vimos pendurado na maçaneta um papel escrito À pressa que dizia: "não abrir porta, zombie de aluna".
-Coitada! - exclamou Rafaela - Ninguém devia ficar preso para sempre!
-Aquela coisa não é uma pessoa. - disse-lhe eu - Vamos embora.
-Mas já foi. Temos de a soltar!
-Rafaela, não!
Tarde de mais. Rafaela abriu a porta, e, no instante seguinte, apareceu uma carcaça putrefacta que só com alguma dificuldade se poderia identificar como um cadáver de um ser humano. O monstro quase correu para nós, com aquilo que em tempos tinham sido os seus braços esticados na nossa direcção.
A compaixão de Rafaela desapareceu, e, tomada de medo, ela empurrou-me contra a parede do estreito corredor para conseguir passar e fugir. Estava nas minhas mãos voltar a fechar a porta.
O monstro já estava muito próximo, pelo que tive de recuar. Mas, como se se tratasse de um número de magia, o corredor estava agora mais longo, e passados alguns metros vi que tinha acabado de passar por uma segunda porta. Fechei-a, e tentei com dedos trémulos trancá-la. Não foi fácil, porque do outro lado a morta ora batia na porta ora puxava a fechadura, com muito mais força do que eu esperava que ela tivesse. Temi que ela conseguisse partir o vidro e me alcançasse.
Felizmente, consegui trancar a porta e escapar ilesa.
Depois disto só me lembro de estar num local semelhante a um laboratório de fotografia, cheio de prateleiras de químicos, e outros materiais necessários a essa arte. Um zombie, gordo e com uma camisola de xadrez, deambulava no pequeno espaço.
A chave para sair do edifício estava dentro dele.
Silenciosamente, para que ele não se apercebesse da minha presença, agarrei uma das garrafas de químicos e despejei-lha em cima.
Ninguém usa ácidos num laboratório de fotografia, pelo menos ninguém que eu conheça. Mas o monstro gritou de dor e uivou como um louco, ao mesmo tempo que o seu abdómen gorduroso era corroído pelo liquido. Não consigo perceber o motivo do que fez a seguir. Agarrou uma longa e fina serra (cujo lugar mais apropriado seria uma oficina de carpintaria e não aquele onde se encontrava) e começou a cortar-se aos bocados.
Tanto se cortou que acabou por cair morto no chão, numa grande poça do seu próprio sangue, carne, gordura e ossos.
Demasiado desesperada para ter nojo ou medo, aproximei-me, remexi o que restava da criatura, e quando por fim encontrei uma chave imunda agarrei-a com prazer e voltei para junto dos meus companheiros.
Não me lembro do final do sonho, mas acho que escapámos.
Na sequela do filme, ou seja, no segundo sonho, eu era uma professora naquele mesmo edifício. Estava a descer umas longuíssimas escadas em caracol. Eram de pedra. Mármore branco, penso. As paredes eram espaçosas, pintadas em tom de creme, com discretos brilhantes. Apesar de irregulares, eram macias: tal e qual como as paredes do prédio onde vivo, em Massamá. Não havia janelas, e eu não sabia há quanto tempo estava a descer as escadas, nem por quanto tempo teria de continuar.
Seguia-me uma multidão de alunos. Não sei se eram zombies ou fantasmas, ou qualquer outro tipo de monstros. Sei, no entanto, que não podiam fazer-me mal até ao momento em que eu demonstrasse que sabia que estava em perigo, ou até aceder a ir onde eles me queriam levar.
Eles falavam-me carinhosamente, convidando-me a acompanhá-los. Eu tinha de saber recusar os convites com gentileza. Eles fartavam-se de me fazer perguntas, e eu mentia-lhes com habilidade, certificando-me de que a teia que tecia era uniforme.
Estava cheia de medo. Mas não podia demonstrá-lo. Tinha os nervos em franja, e os meus dedos e as minhas pernas tremiam. Mas tinha de me comportar com calma e elegância, por isso cerrava as mãos em punhos e punha cuidadosamente um pé à frente do outro.
Quando vi a porta de saída nem quis acreditar. Mas não podia correr. Sempre devagar, caminhei para a porta, despedi-me deles, e saí.

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